sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Poeta da Casa

LEMBRANÇAS DE POSTEIRO
Luiz Vicente Noal


Do campo do corredor,
Até a invernada do fundo,
Onde vivi o meu mundo,
Sete léguas de distância
Separam casas da estância
Ao meu ranchito de peão.
Distante, num canhadão,
Trabalhei anos a fio...
Hoje sinto os arrepios
De viver na solidão.

Eu ainda era mui moço,
Patrão me ofereceu uma quarteada,
Para cuidar da boiada
Dos campos feito deserto.
Nada tinha lá por perto
Da morada do posteiro,
Apenas grandes potreiros
E um poço de vertente,
Pra matar a sede da gente
Na sombra de um limoeiro.

E para ser bem honesto,
Nem dei tempo ao patrão,
E disse - “de sopetão” -
Que eu topava a parada.
Cuidar de boi e boiada
Desde pequeno eu sonhava.
E nada me amedrontava,
Nem mesmo o rigor do inverno
E nem a alma do inferno
Que diziam por lá rondava.

Juntei todas minhas tralhas,
Juntei tudo o que eu podia,
Aperos de montaria,
Panela preta, chaleira,
Cuia, bomba, carneadeira,
Chaira de aço forjado,
Tudo muito preparado
Para uma longa jornada.
Levantei de madrugada
E saí levantando poeira.


A certa altura de viagem,
Deixei de lado o corredor,
Judiado pelo calor
Que assolava todo rincão,
Rumbeando na direção
Do rancho que me esperava.
Por entre sangas cruzava...
Restingas, mato e capim,
Deixando rastros sem fim
Nos caminhos que passava.

A noite se aproximava,
E o sol já ia se pondo,
Cansado, me fui chegando,
Desencilhei meu Picasso,
E com ardência nos braços,
Fui recolhendo os arreios,
Pendurei as cordas no Esteio,
Larguei os pelegos no oitão,
Acendi um fogo de chão
E acomodei meus anseios.

Naquela primeira noite,
Tudo foi improvisado.
Com as tralhas no costado,
Preparei um chimarrão,
Acalmei meu coração
Que corcoveava faceiro,
Ajeitei um candeeiro,
Botei água na cambona,
Cortei charque de mamona
E fiz um baita carreteiro.

E com o passar dos dias
Naquele rancho, entonado,
Agora, mais ajeitado
Com a chegada deste peão,
Que, embora, na solidão,
Fui aprendendo a viver
E como qualquer outro ser,
Espalhado na natureza,
Adormecia na certeza
De um novo amanhecer.
E assim, por anos afora
Naqueles campos, solito,
Convivendo com os gritos
Dos bugios lá na restinga,
Do cantar da jacutinga
E floreios de cardeais,
De relinchos de baguais
Retoçando no banhado.
Berros, dos quatro lados,
Sinfonias de animais.

Foram dezenas de invernos
E tropas que se invernava...
Todo dia eu campereava
Cuidando sempre do gado.
Fui ficando calejado
Desta vida de campeiro.
O destino, caborteiro,
Cansado de me cobrar,
Que era hora de parar...
E abandonei os potreiros.

Me despedi do meu rancho,
A minha velha morada,
E fiz a última troteada
Na direção da estância,
E, apesar da distância,
Segui num trote marcado,
No lombo de um bragado,
Meio ventena, faceiro,
Delgado, muito ligeiro,
Que há pouco eu havia domado.


Naquele rancho, distante,
Deixei o pouco que tinha
Aparatos de cozinha,
Um par de arreios, sovado,
Para poderem ser usados
Por mãos de outros campeiros,
Que ficarão mui faceiros
Pela herança deste peão.
Só os aperos de chimarrão
Levei pra ser companheiros.

Oitenta anos no lombo,
Agora vivo no galpão,
Lá da estância do patrão,
Onde tudo é mais moderno.
Sinto calor no inverno,
Sinto frio no verão...
Dizem que é a evolução
Que gente moderna vive
Coisas que nunca tive
No meu ranchinho de peão!

Apesar das coisas modernas
E do costume atual,
Nunca perdi o ritual
De um campeiro chimarrão.
Em roda ao fogo de chão,
Antes do amanhecer.
Mas, enquanto eu viver,
Vou pra sempre carregar
Vontades de chimarrear
Até na hora de morrer.